quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Seguranca Alimentar

Fúria legislativa controla tudo o que chega ao prato

Segurança Alimentar
É como uma espiral que se vai fechando. Em nome da saúde pública e da protecção dos consumidores, todos os anos surgem novos regulamentos e decretos que apertam o cerco a tudo o que ameaça uma gastronomia "higienizada", nascida de procedimentos padronizados e usando utensílios controlados. Para o sector alimentar vale o chamado princípio da precaução: na dúvida, elimine-se o risco à nascença.

Estarão a matar a nossa forma de comer?
A profusão legislativa prova como nunca foi tão grande a preocupação com a segurança alimentar. São 18 os diplomas mais directamente aplicáveis à fiscalização de estabelecimentos, mas abrindo o leque para bens alimentares e equipamentos o número ascende a quase duas centenas. Há exemplos quase caricatos só no domínio dos hortofrutícolas, existem 12 regulamentos comunitários para frescos, sete para transformados, três relativos a controlos de conformidade, dois sobre comercialização. Dois decretos definem regras para doces e geleias, mas existe um terceiro diploma só para a marmelada.

Se muitas destas iniciativas são nacionais, já os principais regulamentos relativos à higiene e aos mecanismos de controlo de riscos por parte dos agentes de restauração nasceram em Bruxelas - o nº 852/2004 é a principal "bíblia" - e são de transposição obrigatória. O que leva Luís Meneses Leitão, coordenador do Curso de Direito de Consumo da Faculdade de Direito de Lisboa, a considerá-los um "custo da integração". Sem dramatizar os padrões de exigência, sustenta que Portugal não acompanhava, no passado, padrões europeus. "A verdade é que os estabelecimentos tradicionais têm mostrado dificuldade em adaptar-se".

A Associação da Restauração e Similares de Portugal (ARESP) admite que sim, mas explica porquê. "Infelizmente a legislação é muito penalizadora para o sector e não contempla as especificidades das micro-empresas", salienta Susana Leitão, coordenadora do Departamento de Qualidade da ARESP. Por isso a preocupação tem sido "guiar" os operadores e, em simultâneo, trabalhar em cooperação com a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), o órgão fiscalizador que suscita as mais opostas reacções amado por quem aplaude o rigor, odiado pelos que consideram personificar a frieza legislativa insensível às tradições.

Sem incompatibilidade...
"Tradição e segurança alimentar não são conceitos incompatíveis", apressa-se a esclarecer a Secretaria de Estado do Consumidor, que tutela a ASAE. Exemplo disso, acrescenta o gabinete de Fernando Serrasqueiro, é a famosa Feira do Fumeiro de Vinhais, cujos organizadores tomaram a iniciativa de contactar a ASAE. Foram feitas acções de esclarecimento e os produtos certificados. Moral da história "A tradição mantém-se intacta".

O regulamento nº 852 prevê duas situações que podem autorizar medidas nacionais que adaptem os requisitos, sempre mediante consulta prévia à Comissão Europeia. Uma contempla "regiões sujeitas a condicionalismos geográficos especiais". Outra visa permitir "a continuação da utilização dos métodos tradicionais em qualquer das fases da produção, transformação ou distribuição dos géneros alimentícios".

Meneses Leitão alerta, contudo, para o facto de serem excepções que têm carácter restritivo, não podendo ser aproveitadas para alargar o âmbito da aplicação. Por isso insiste que a adaptação dos operadores é incontornável. Até à escala mundial, acrescente-se, ou não sejam as normas europeias coerentes com as emanadas da Organização Mundial de Saúde e da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), como o Codex Alimentarius.

E que dizer da aparente subjectividade na aplicação das normas europeias? Um exemplo nada diz expressamente que um lavatório numa cozinha tem de ser accionado por pedal ou célula, mas chega-se lá pelo facto de as torneiras serem uma fonte potencial de contaminação. O docente universitário sublinha que "nenhuma lei consegue excluir a subjectividade do aplicador". Ou seja, "cabe em grande parte ao órgão fiscalizador definir os princípios de aplicação".

Uniformizar procedimentos é precisamente o objectivo da "ficha técnica de fiscalização", elaborada pela ASAE em parceria com a ARESP. Esta associação fez, por seu turno, uma ficha anotada com recomendações e esclarecimentos, para ajudar os operadores, igualmente validada pela Autoridade. A ASAE disponibiliza as fichas on-line, "em nome da transparência".

Proibido fabricar em casa para vender à restauração
Não interessa se tem experiência de décadas, se é cuidadosa nas regras de higiene ou se faz os melhores rissóis do quarteirão. Se não tem estabelecimento licenciado, a D. Rosa (nome que vale para todas as pessoas que fazem doces, salgados ou petiscos em casa) não pode vender para o café da esquina. O fabrico no domicílio de produtos alimentares para venda é proibido e não há margem de resistência da chamada economia informal.

Se por definição escapa a todos os mecanismos de declaração de produção e volume de actividades, não pode haver números claros sobre o peso da economia informal, mas estima-se que Portugal seja um dos países da Europa onde é mais elevada. Na globalidade dos sectores de actividade económica, estima-se que represente 20 a 22% do Produto Interno Bruto (PIB - a riqueza produzida pelo país).

Os diplomas que regulam o licenciamento estabelecem classificações em quatro níveis consoante a dimensão, variando a responsabilidade pela aprovação de licenças entre a câmara municipal da área e a Direcção Regional de Economia.

Seja qual for a classificação, qualquer unidade que produza alimentos fica obrigada a cumprir as normas de higiene constantes do regulamento comunitário nº 852 (principal "bíblia" nesta área), assim como as de rotulagem (decreto-lei 560/99). Independentemente de razões fiscais ou económicas, do ponto de vista da segurança alimentar desconfia-se de toda a produção que não possa ser controlada.

Idênticas restrições aplicam-se ao fornecimento de géneros a um estabelecimento. Se os proprietários de um restaurante, por exemplo, têm uma pequena horta ao lado, ficam obrigados a distinguir o seu uso para consumo próprio da recepção de matéria-prima na empresa. Esta recepção tem de estar sempre documentada, até para garantir a rastreabilidade de todos os produtos.

Associação prepara manual para ajudar pequenas empresas
Os ingleses chamam-lhe "a regra dos 4 C's", mas a tradução para português obriga a redefinir a fórmula. É britânica a inspiração para um Manual de Segurança Alimentar destinado às pequenas empresas, que a Associação da Restauração e Similares de Portugal (ARESP) conta finalizar durante o mês de Janeiro. O objectivo é simplificar os procedimentos do já famoso HACCP - leia-se Sistema de Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos.

"As microempresas com dois ou três funcionários têm muita dificuldade em adoptar o HACCP. É talvez o maior problema que se mantém no sector", explica Susana Leitão, coordenadora do Departamento de Qualidade da ARESP. Havendo já um manual elaborado pela "Food Standards Agency" (agência britânica), foi solicitada autorização para se proceder à sua tradução e adaptação à realidade portuguesa.

"Cross contamination, cleaning, chilling, cooking"- ou seja contaminação cruzada, limpeza, refrigeração e confecção - são os "4 C's" em torno dos quais a agência britânica arrumou regras fáceis de seguir, sem pôr em causa o cumprimento dos princípios de autocontrolo a que os operadores estão obrigados.

A preocupação de guiar as empresas no respeito pela legislação começou em 2000, ano em que foi lançado o primeiro dos actuais cinco códigos de boas práticas (o sexto, em elaboração, abrange o transporte de alimentos). Idêntica é a meta do programa "Selecção", lançado em 2004 e recentemente reformulado. Mediante inscrição, um empresário de restauração solicita uma auditoria ao seu estabelecimento e a ARESP faz o levantamento das irregularidades. Se estas forem mínimas ou inexistentes, o prémio é entrar na "Rede Selecção". Caso contrário, aplica-se um "programa individual de melhorias", de duração variável mas que em média se estende por meio ano.

FONTE: Jornal de Notícias

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